Luciano Branco Guimarães
Advogado, Especialista em Direito
Empresarial – MBA – pela Fundação Getúlio Vargas, 2011.
Muito se tem especulado e debatido acerca da adoção para alguns, extremista, imposta pelas medidas administrativas adotadas no Decreto nº 11.004, de 16 de junho de 2.021, exarado pela Prefeita Municipal, que disciplina medidas restritivas excepcionais de prevenção para o controle da proliferação do coronavirus (COVID-19), e dá outras providências.
Debatem-se, no campo jurídico, se as medidas seriam em tese, inconstitucionais, na medida que ofendem ao direito ao trabalho digno, inserido no Artigo 5º., inciso XIII; o direito de locomoção, garantido pelo artigo 5º., inciso XV; ao princípio da livre iniciativa e da valorização do trabalho humano, previsto no artigo 170, todos da Constituição Federal.
Pois bem, para tanto são necessárias trazer-se à discussão, se a colisão entre direitos fundamentais, de maneira geral (que ocorre quando o exercício de um direito fundamental por parte de seu titular, colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular, em
outras palavras, até onde deve prevalecer o direito ao trabalho, o direito de locomoção, o principio da livre iniciativa e da valorização do trabalho humano, em face ao direito à vida e a proteção coletiva da saúde).
Não existe no sistema brasileiro Constitucional uma hierarquia entre direitos fundamentais, por ser incompatível com sua natureza e função no Estado Democrático de Direito, e assim, temos que a colisão entre regras e direitos fundamentais deva ser solucionada no plano de validade da norma, em conformidade com os critérios cronológicos (lei posterior derroga a anterior), hierárquicos (lei superior derroga lei inferior) e da especialidade (lei
especial derroga lei geral).
Em princípio, os direitos fundamentais são ilimitados. Contudo, poderão sofrer limitação legitima em casos de necessária elaboração de norma restritiva de direito fundamental, quando um ou mais direitos fundamentais colidem entre si ou com outro princípio constitucional, e assim, uma vez caracterizada a colisão entre direitos, cabe ao aplicador da lei fazer uso do caso concreto e através da razoabilidade, ponderar os interesses, os bens jurídicos tutelados, afim de fornecer melhor solução à sociedade no caso concreto.
Deve-se compreender o que cada interesse em jogo representa, na medida em que as normas que produzem tais limitações se justificam na medida em que se mostram aptas a garantir a melhor sobrevivência do interesse contraposto; quando não houver solução menos
gravosa e, quando o benefício alcançado com a restrição a um interesse compensar o grau de sacrifício imposto ao interesse antagônico.
Desta forma, entendemos que a técnica mais adequada para a solução de conflitos entre direitos fundamentais é a ponderação de interesses e de bens, idealizada pela jurisprudência alemã, com base no princípio da razoabilidade.
Fazendo a ligação para o assunto que nos move, as medidas conhecidas como lockdown na cidade de Barretos, aduzidas no Decreto nº 11.004, de 16 de junho de 2.021, são legais? São Constitucionais?
O direito de locomoção em todo território nacional em tempos de paz, garantido pelo artigo 5º., inciso XV; o direito ao trabalho digno, inserido no Artigo 5º., inciso XIII, o princípio da livre iniciativa e da valorização do trabalho humano, previsto no artigo 170, em princípio, devem ser respeitados, haja vista que não estamos diante de estado de sítio, SIM.
Quais seriam os limites desses princípios?
Em nosso entendimento, os limites seriam os inseridos na Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2.020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, trazendo em seu artigo 2º. as seguintes definições:
Art. 2º Para fins do disposto nesta Lei, considera-se:
I – isolamento: separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou
de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas
postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a
propagação do coronavírus; e
II – quarentena: restrição de atividades ou separação de pessoas
suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes,
ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou
mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a
possível contaminação ou a propagação do coronavírus.
Parágrafo único. As definições estabelecidas pelo Artigo 1 do
Regulamento Sanitário Internacional, constante do Anexo ao Decreto
nº 10.212, de 30 de janeiro de 2020 , aplicam-se ao disposto nesta
Lei, no que couber.
Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de
importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades
poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as
seguintes medidas: (Redação dada pela Lei nº 14.035, de 2020)
I – isolamento;
II – quarentena;
III – determinação de realização compulsória de:
a) exames médicos;
b) testes laboratoriais;
c) coleta de amostras clínicas;
d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou
e) tratamentos médicos específicos;
III-A – uso obrigatório de máscaras de proteção individual; (Incluído
pela Lei nº 14.019, de 2020)
IV – estudo ou investigação epidemiológica;
V – exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver;
Ao se analisar o Decreto nº 11.004, de 16 de junho de 2.021, entendemos que o mesmo não respeitou as normas de colisão entre regras e direitos fundamentais, acima tratadas, e portanto, no plano da validade da norma, deve ser considerado nulo desde o início.
Isto se deve ao fato de que uma norma restritiva de direito fundamental, quando um ou mais direitos fundamentais colidem entre si ou com outro princípio constitucional, deve ser trazida no caso concreto sob o ponto de vista da razoabilidade e da ponderação respondendo as seguintes indagações:
1) As medidas que serão produzidas se justificam e se mostram aptas a trazer a melhor solução à coletividade?
R- Não se justificam, na medida em que, não se promoveu um isolamento nas pessoas doentes ou contaminadas, até por falta de testagem e pela ausência ou eficácia de um estudo ou investigação epidemiológica.
2) Existe solução menos gravosa?
R- Sim, pois a investigação epidemiológica eficaz, a testagem e o isolamento das pessoas doentes ou contaminadas, na forma do artigo 2º. da Lei nº 13.979, seriam medidas menos gravosas, ou de menor onerosidade à população barretense.
3) O benefício pretendido com a restrição compensa o grau de sacrifício ao interesse comum?
R- Não, na medida em que os demais isolamentos promovidos na região se mostraram em curto período posterior, ineficazes.
O caso em tela, temos que o referido Decreto Municipal, extrapolou os limites da Lei nº 13.979, e desta forma não cumpriu às regras de ponderação e razoabilidade, que lhe garantiriam a flexibilização dos direitos constitucionalmente tutelados, de locomoção, do trabalho e a garantia da livre iniciativa, ofendendo em especial ao artigo 3º., pois determinou uma quarentena (excepcional) sem contudo determinar a realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coletas de amostras clínicas, no âmbito de sua competência, ou seja em toda a população da cidade de Barretos.
Concluindo, o Decreto Municipal nº 11.004, de 16 de junho de 2.021, viola diretamente a constituição, não em relação aos direitos de locomoção, do trabalho e a garantia de do princípio da livre iniciativa, mas em relação ao conflito de normas, onde norma inferior (o Decreto Municipal) violou regras determinadas por norma superior (Lei nº 13.979).
É aí que se reside a inconstitucionalidade do Decreto Municipal nº 11.004, no nosso entendimento!